16 de maio de 2011

O moderno e o contemporâneo

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Escrito por Ronaldo Brito   
Sex, 29 de Abril de 2005 18:24
(o novo e o outro novo)
Ronaldo Brito
Com a explosão das vanguardas nas primeiras décadas do século. a obra de arte passou a ser tudo e qualquer coisa. Nenhum Ideal teórico, nenhum princípio formal poderiam mais defini-la ou qualificá-la a priori. Seguindo um movimento paralelo ao da ciência - e até da própria realidade, com o afluxo das massas - a arte tornou-se Estranha. A sua aparência mesma mostrava-se oposta ao mundo das aparências, com o qual sempre esteve (problematicamente) ligada. A Modernidade apresentava de início um sentido manifestamente liberatório, caracterizava-se pela disponibilidade absoluta: parecia possível fazer tudo. com tudo. em qualquer direção. Bigode e cavanhaque na Mona Lisa, peças de mictório em museu, assim por diante. Mas o gesto de liberar implica uma situação de opressão, uma situação insustentável.
A liberdade moderna não era simplesmente a afirmação de novas possibilidades: era sobretudo uma revolta. um desejo crítico frente às coisas e valores instituídos. No limite, expressava o paradoxo de um sujeito que não reconhecia mais o mundo enquanto tal. E de um objeto - o mundo - que parecia não se comunicar com a principal figura construída pela civilização ocidental: o Sujeito. A correlação organizada - amarrada mesmo por laços de autoridade indiscutíveis - entre Sujeito e Objeto, a famosa Razão do século XIX, dissipava-se ao sabor dos ventos no cotidiano massificado. Era desconstruída minuciosamente nos laboratórios de pesquisa e salas de aula.
Por que os ateliers ficariam alheios a essa, digamos, Confusão Esclarecedora?
A radical negatividade Dadá. o escândalo surrealista e a Vontade de Ordem Construtiva, com suas diferenças irredutíveis. tinham porém um ponto em comum: desnaturalizavam o olho. descentravam o olhar ,abriam um abismo no interior da Contemplação. o lugar por excelência das Belas-Artes. Sem a segurança desse lugar - sem o sublime dessa atividade imaterlal e desinteressada da contemplação pura - onde situar a arte? Uma resposta inicial era evidente e inquietante: em nenhum ponto fixo que organizasse, em perspectiva, o mundo ao redor. As chamadas artes visuais não distribuíam mais um suposto duplo da realidade aparente (de fato. nunca o fizeram). uma reconfortante e gratificante doação de prazer que ratificasse a plenitude da Nossa Visão. Ao contrário. empenhavam-se em dissolvê-la, questionar o próprio visível. denunciar a sua fragilidade. Assim, não localizavam nada inversamente. tiravam as coisas do lugar. Ora. com isso perdiam sua posição marcada, os pontos de apoio. ficavam enfim deslocadas. Isto é. sem localização fixa. Histórica e filosoficamente destinadas pelo Ocidente a duplicar a Realidade - daí sua condenação ou valorização - a arte perdia o seu estatuto ao voltar-se contra si mesma e contra o Real enquanto Unidades. Realizava desse modo tarefa simetricamente oposta a que lhe fora atribuída.
Desde então. fala-se em Crise da Arte. Em sentidos vários, de maneiras diversas. a arte não reencontraria mais a plena Razão de Ser. Claro, a crise era extensiva a todo o espaço cultural. a todo o Simbólico de um mundo em meio a processos de transformação que o desfiguravam ininterruptamente. No caso da arte, porém, a contradição atingia em cheio a própria obra, suspensa e indefinida agora entre seu caráter único - guardado pelas Belas-Artes - e a multiplicidade exigida pela técnica. Esta inadequação básica, imediata, provocava no trabalho uma premência, uma tensão, que em diferentes níveis seguem presentes ainda hoje. Obrigada a ser Única, convocada a ser Múltipla. a obra de arte virava um campo de batalha onde lutavam forças opostas e desiguais. Cindia-se assim a Bela Aparência e dela emergiam espaços e figuras sem nome. Aí começa a inevitável pergunta: isto é arte? Não. senhoras e senhores, a arte é que é isto. Qualquer isto. Um isto problemático. reflexivo. que é necessário interrogar e decifrar. O saber da arte, o poder da arte, desenvolvidos mais ou menos à sombra na civilização do Logos, puseram-se em movimento para "compreender" a nova situação. O projeto moderno, convém lembrar, representou um esforço duplo e contraditório: matar a arte para salvá-la. Questão de sobrevivência - ou pensar a inteligência negativa de si mesma ou correr o risco de morrer desapercebida do tumulto de um mundo anônimo e feroz.
Pensar a morte da arte, praticá-la por assim dizer, era a rotina das vanguardas no início do século. Que o fizessem pondo em circulação uma infinidade de novos esquemas formais, novos procedimentos, assimilando ainda uma complexidade de raciocínio aparentemente estranha a sua démarche, prova somente a qualidade do problema. Nenhum gesto isolado, nenhum decreto, conseguiria interromper esse processo intelectivo coerente sobre o qual o Saber Dominante Ocidental (a Filosofia e, a seguir, a Ciência) sempre manifestou desconfiança ou desprezo. De fato, ao colocar-se em xeque, a arte visava também ao que se pensava e ao que se dizia correntemente dela. Eis um ponto onde, surpreendentemente, filosofia e senso-comum andaram muitas vezes juntos. Hoje aparece cada dia com mais clareza a distinção - senão a contradição - entre o Saber da Arte e o Saber sobre a Arte. Entre a verdade produtiva dos trabalhos de arte, ao longo da
História, e o discurso da História da Arte. E se constata o quão pouco se conhece desse primeiro e decisivo saber, apesar dos esforços em direção a uma pretensa ciência da arte.
Dessa diferença, passa às vezes sob silêncio, a arte moderna tirou sua força de emergência. Da insuspeitada distinção entre a obra e o valor da arte. Ou, em linguagem contemporânea, entre o trabalho e o Sistema da Arte. Obviamente um faz parte do outro, mas não são coincidentes. O que causou escândalo, impôs-se como poder negativo, foi afinal a revolta do trabalho contra o seu processo de institucionalização. A discussão do seu valor social, no sentido amplo do termo. As linguagens da arte, subitamente evidenciou-se, não criavam o próprio valor. Este era construído, fabricado, pela estrutura burocrático-ideológica que as cercavam. Como tudo o mais, essa atividade que se supunha existir numa região qualquer da empiria mas abaixo do Real, com letra maiúscula - protegida e dominada por ideologias como a da genialidade - possuía uma materialidade social. Era instrumentalizada como força simbólica, cumpria papéis enfim. Ao investir contra esses papéis a arte investia de certo modo contra si mesma - ela também era isto, quisessem ou não as estéticas decadentes da arte pela arte. Mas ao sobreviver a esse choque, adquiria espaço próprio, precário e ambíguo, mas próprio, para atuação crítica. Interpunha uma distância polêmica entre a sua inteligência e as figuras do Museu, as determinações do mercado, a autoridade da chamada História da Arte.
Esse espaço crítico precário, essa distância polêmica, as vanguardas criaram a golpes de lúcida loucura. Pode-se tomá-los como o seu verdadeiro trabalho, para além das obras e ideologias específicas. Aí residiu, rigorosamente falando, o Território da Vanguarda, seu valor e delimitação históricos. Depois desse momento, fala-se em vanguarda num sentido figurado, ou de fato equivocado. Como o termo Vanguarda implica e explica, ela significou um momento em que a produção estava radicalmente à frente do local onde operava - a Instituição-Arte. Ora, um descompasso radica/só pode sê-10 uma única vez - no momento mesmo em que é denunciado. A defasagem entre a produção e a instituição segue em curso no nosso conturbado universo cultural, mas agora sob o paradoxal signo da continuidade do descompasso. Nomeá-la vanguarda, a rigor, é desconhecer a realidade atual ou abusar do termo: não pode haver a tradição da vanguarda, a não ser como contrafação.
A Tradição da Inquietude
A institucionalização da modernidade, a complexa manobra de transformações e recalques que exigiu do universo simbólico dominante, produziu uma esquisita situação.
Harold Rosenberg chamou-a A Tradição do Novo (1). O ingresso dos objetos modernos na História da Arte não se fez sem profundas acomodações do terreno. Mas ocorreu, é um fato consumado. Aquele material a princípio "inaceitável" foi enfim submetido ao mesmo processo sublimante e, tanto quanto as obras do passado, transformou-se em Figuras Ideais. Modelos, coisas transcendentes à condição de coisas A modernidade vencera, a modernidade perdera. Não há meio simples e direto para sintetizar a questão. Necessariamente toma forma antitética, obriga a pensá-la em suas diversas dimensões. Aceita, incorporada à tradição, a modernidade foi automaticamente negada enquanto vanguarda. A tradição moderna apresenta-se entretanto de maneira problemática pois a instituição não detém ainda sua completa inteligibilidade. Daí o "eterno retorno" da questão da vanguarda - a presença surda de conteúdos como a morte da arte, a antiarte e outras metáforas dessa ordem, ou melhor, dessa desordem. 'Daí o sentimento de falência, o fantasma de culpa, que parecem onipresentes em todos os espaços do mundo da arte. De algum modo, os trabalhos radicalmente modernos ainda pressionam e irradiam uma inteligência avessa à ideologia Belas-Artes. Esta percebe e recupera só os traços superficiais, os signos externos. As operações transgressoras não são devidamente assimiladas. O que pode significar, por exemplo, pensar um Picasso? Certamente algo diferente das verdades I correntes atribuídas a Picasso. O saber produzido por esse I artista, quem o acompanha no registro correto, no seu embate minucioso (e silencioso) com a História da Pintura? Não é um problema de métier. Mas exatamente a questão da pintura enquanto sistema organizador da visual idade, cotidiana, inclusive. Desnecessário praticar pintura para compreender a questão. É indispensável, contudo, conhecer por dentro as articulações do processo para não ficar preso à sensibilidade do olho empírico. Esta sensibilidade, contra a suposição comum, é a que existe de menos espontânea: está totalmente determinada pela estrutura dos códigos vigentes de inteligibilidade. Gostar ou não gostar, nesse sentido amplo, é a mesma coisa - em qualquer dos casos já se perdeu a chance de ver o real do trabalho ao traduzí-lo na rede instituída do Visível Possível. E este, vale insistir, não representa o limite do olho humano e sim o de uma dada construção da Visualidade coerente com a implantação e manutenção da ordem burguesa. Aí dentro a modernidade artística situa-se ambígua e dificilmente. Onde se queira mostrar sua estrita aderência a essa ordem, até mesmo alguma função protetora, é fácil localizar as partes antagônicas (o raciocínio acima pretendeu demonstrá-las). Onde, inversamente, se tente provar uma oposição absoluta entre o modo de produção capitalista, vamos dizer, e os procedimentos da arte moderna, o raciocínio corre o sério risco de cair no vazio. Impossível ser simples em se tratando de relações ou refrações complexas, superpostas, invisíveis a olho nu. Impossível decidir a questão num julgamento formal de

Essa resistente inadequação, essa inquietude dos esquemas formais modernos (Theodor W. Adorno (2): as formas são conteúdos historicamente condensados) no quadro da História da Arte, vai possibilitar uma arte contemporânea, e adiante, um espaço da contemporaneidade. Este não seria uma figura clara, com âmbitos plenamente definidos. Seria um feixe descontínuo, móvel, a se exercer na tensão com os limites da modernidade, interessado na compreensão e superação desses limites. Não há uma diferença evidente entre o trabalho moderno e o trabalho contemporâneo, válida por si, há, isto sim, démarches distintas agindo "dentro" e "fora" deles. "Dentro" porque o trabalho de arte contemporâneo não encara mais a ação modernista como esta se idealizava e sim como resultou assimilada e recuperada. A erosão dos novos valores, a modernidade evidentemente desconhecia: a luta era contra os arraigados valores do século XIX. A partir da pop, no entanto, a arte vive no cinismo inteligente de si mesma. Vive com a consciência aguda das castrações que o Princípio da Realidade impôs à libido das vanguardas. Mais grave, com a certeza sobre a incerteza da identidade de suas linguagens - estas, por mais radicais, sofrerão inevitavelmente o choque com o circuito, e aí, só aí, dirão quem são.
"Fora" os procedimentos são outros tambi3m. A mudança da hegemonia do mercado de Paris para Nova York não foi somente uma questão geográfica. Foi uma mudança estratégica. Nova York não é um centro como Paris o era, representa um novo tipo de hegemonia que age pelo descentramento, pela expansão volátil, sem fronteiras nacionais ou outras delimitações fixas. Os novos procedimentos condensam as articulações do circuito: os ismos se atropelam a ponto de perderem sentido, a "História da Arte" aparece cada vez mais maciça e, até, totalitariamente. Os trabalhos acumulados não vão possuir uma cronologia explicativa de movimentos. Não existe mais uma ordem de sucessão temporal que permita o encadear de semelhanças, oposições, filiações e conflitos. Quem desaparece diante da produção contemporânea é a nitidez da instância genealógica da História da Arte e multiplica-se a densidade e complexidade da instância teórica. Não pode existir uma Teoria da Contemporaneidade. O próprio desta contemporaneidade é ser um "amontoado" de teorias coexistindo em tensão, ora convergente, ora divergente. Esta é a História deste Outro Novo. Ao mesmo tempo, em contrapartida, a produção se especifica, analisa com detalhes cada um de seus momentos, é atravessada por uma série de exigências técnicas que põem em suspenso o próprio conceito de arte como era e ainda é entendido. E aqui a técnica deixa de ser meio expressivo do sujeito. Ao contrário, passa a ser necessidade objetiva de os artistas dominarem uma racional idade profunda e generalizada para acompanhar as determinações do sistema cultural. Necessidade de investigar o seu campo de atuação ao nível da consciência crítica. Numa certa medida, não é mais a arte que permite a História da Arte e sim o inverso - a História da Arte, esta construção a posteriori, infiltra-se na produção e parece mesmo determiná-la.
Curioso, sintomático mesmo, pouco se fala na passagem da modernidade para a contemporaneidade. Talvez inconscientemente a última passe, para a maioria, como mera decadência da primeira. As grandes obras teriam sido feitas e restaria apenas a tarefa de esgotar as linhas de pesquisa modernistas. Ou então o contemporâneo vira sinônimo de toda realização do momento, resumida assim a uma cronologia empírica. Esse critério risível esquece, prefere esquecer, a luta que se trava no campo simbólico para tratá-lo como espaço neutro, contínuo e indiferenciado. Num outro nível, menos inconseqüente, a insistência sobre a idéia de vanguarda indica a resistência em reconhecer a Questão Contemporânea e sua especificidade. Esta mostra-se muito menos maleável a simplificações pois rejeita esquemas formais ou conteúdos privilegiados. Nem sustenta a sedutora ingenuidade de matar a arte - ela não é apenas a produção dos artistas mas uma empresa do Sistema, um canal ideológico, uma Instituição Histórica enfim. A arte não pode, não tem poder para matar a Arte.


As manobras contemporâneas

Como abordar a Questão Contemporânea? De que maneira encaminhá-la? Em torno dessas indagações esse texto vai tentar localizar alguns pontos. A dificuldade inicial reside na impossibilidade de aceitar certas colocações correntes, com conceito e reputação críticos formados Por exemplo: toda espécie de interrogação direta sobre arte e política, arte e sociedade, arte e tecnologia, arte e ciência etc. Este modo de questionar revelou-se improdutivo ao querer definir os nexos entre as transformações da arte moderna e aquelas ocorridas nesses outros espaços. Quase sempre o reducionismo mutilou a própria realidade da arte. A experiência contemporânea conduz a manobras simultaneamente mais abertas e precisas. Paradoxalmente, para decifrar os pontos de contato entre a arte e os demais processos sociais mostrou-se imprescindível aprofundar a investigação no interior da própria arte e aí, só aí, violar sua intimidade e esclarecê-la. Não se pode tomar suas representações empíricas e procurar ligá-las, à força, com outros interesses. Querer que a arte diga o que não quer dizer, e sim o que se quer que ela diga.(3) Na verdade, essas operações imediatistas acabavam por deixá-la intacta, não empreendiam a tarefa de desmontar sua construção apontar suas conexões e cumplicidades dentro do que se está no direito de chamar guerra ideológica em curso. Falhavam em criticar sua inscrição no processo de transformação social, falhavam ao pretender usá-la como "instrumento" revolucionário. Sem pensá-la como objeto específico - atravessado por interesses de todas as ordens sim, mas mediados sempre por uma instituição e uma História particulares - é impossível conhecer o real da arte como discurso e saber promovidos e hierarquizados pela civilização cristã-ocidental.
Do mesmo modo, a Questão Contemporânea resiste às inevitáveis investidas acadêmicas formalistas. As diversas empresas teóricas que desejam adequar os novos procedimentos ao teílos da História da Arte esbarram de saída com a "falta" de novidade, a impossibilidade de localizar, precisa e inequivocamente, um lance, um sintagma, com grau positivo de transformação, Para uma certa contabilidade positivista, a contemporaneidade artística lembra um simples Espaço da Repetição. À falta de rupturas formais (bem entendido, o que supõe ser rupturas formais) o moderno olhar acadêmico pensa reencontrar a antiga estruturação dos códigos visuais clássicos, no máximo procura detectar mudanças sintagmáticas dentro da continuidade modernista. Em ambos os casos, erra o alvo. Ver na pop, insistindo no exemplo, um retorno ao figurativismo é acreditar demais no Estilo e em tudo o que essa suspeita categoria esconde - a própria verdade produtiva. De fato, a inteligência pop é de ordem mais Abstrata do que a maioria da arte dita abstrata, presa já às Figuras da Abstração. Uma aguda consciência reflexiva da material idade arte, uma concepção altamente abstraída do' seu sentido histórico, estão na raiz da operação pop - suas figuras são assim abstratas por excelência, põem em xeque a própria substância, o seu valor mesmo enquanto linguagem instituída. Só a extrema e surpreendente aderência de preconceitos substancialistas no interior das visões formalistas explica leitura tão grosseira - a organização horizontal-vertical de Mondrian viraria, nessa linha de raciocínio, uma Substância, um Conteúdo, carregados de verdades em si, e em seu nome seriam isoladas todas as outras sintaxes. Isso significa não apenas a incompreensão da pop mas do próprio Mondrian e demais postulados construtivos anti-substancialistas. Inferir relação coerente entre as imagens pop e os conceitos que "representam" é desconhecer as manobras de estranhamento, cinismo corrosivo, desubstancialização e desconstrução dos códigos vigentes ali expostos. Identificar todo e qualquer procedimento "figurativo" à estruturação da linguagem tradicional implica fetichizar os chamados procedimentos abstratos - promovê-los, ao nível imediato e até certo ponto falso do Estilo, à categoria de Norma. Quer dizer, academizá-los, buscar a estruturação definitiva. Não perceber a desestruturação da linguagem pop passa a ser apenas sintoma de um desejo renovado de ordem. Sintoma de um desejo de sentido pleno.
Mas o simples ato de enquadrar a pop na seqüência da Arte Moderna, como novo lance transformador, não vai também muito longe. Trata-se de um gesto assimilatório, já devidamente produzido pelo mercado e museus em âmbito internacional. Às custas, diga-se, do poder de fogo pop por excelência - a informalização generalizada dos conteúdos e hierarquias do Mundo da Arte, sua redução ao modelo chapado da sociedade de consumo, a dispersão inteligente e calculada dos vários momentos e instâncias desse sutil canal ideológico. Embora contabilizada pelo "desencanto" pop, a recuperação de seus esquemas e sua entronização na História da Arte viola a inteligência do movimento ao realizar démarche inversa: reconstruir a positividade dos momentos da arte e passá-los, incompreensível e magicamente, sob a forma mítica de um valor sem valor, "objeto de cultura". Nessa assimilação entretanto foram e vão um pouco as cinzas - ou a areia - da prévia consciência da obra pop sobre o seu destino "assimilável". Pela primeira vez, visivelmente, os trabalhos traziam consigo as marcas da própria alienação - existiam na tensão de serem o que não eram e não serem o que eram. Essa cicatriz risonha do trabalho pop continua a incomodar a instituição que o absorve e trafica, a ironizar sua zelosa violência.
Há, sim, um conformismo aí. Ao conformar-se ao ambiente em redor, moldar um estilo homólogo, o trabalho pop rompe, numa primeira instância, com a tradição romântica maldita. Tradição de culto ao embate imediato. Nesse aspecto, comparativamente, a contemporaneidade em geral tende à sobriedade e à economia de meios. O peso da morte da Morte da Arte foi considerável, suficiente para levar à reavaliação de seu verdadeiro poder. Um raciocínio político mais fino e minucioso, estratégico, vai aparecer entretanto como nova modalidade de combate crítico. Um raciocínio analítico, mediatizado, que logre detectar as articulações da material idade arte e nela possa intervir com um cálculo de eficiência. A presença problemática desse cálculo caracteriza e distingue a produção contemporânea, muito mais do que quaisquer procedimentos formais ou núcleos temáticos.

Razões de Arte

Operação mimética - e não puramente eidética - a arte sempre estabeleceu relações sinuosas, escabrosas até, com a Racionalidade. No limite, sempre produziu verdades mais ou menos clandestinas enquanto tais. Verdades menores, errantes, que não chegavam a enfrentar o tribunal da Razão. Reino do talento e do gênio, atributos da Naturalidade, participava da cultura com esse estatuto ambíguo - para sua glória e transitoriedade. Dizendo o mínimo: a arte passava por uma estranha espécie de conhecimento que não. se autoconhecia. Assim foi aceita e nomeada. E; por essa limitação constitutiva, estava em tese desde Platão condenada a desa parecer. A sedimentação generalizada - e generalizante da Razão Técnica a partir do século XIX transforma porém a morte da arte em matéria cotidiana: o novo ambiente, a psicanálise, a política, a ideologização progressiva das esferas de comportamento ameaçam diretamente invadir seu domínio, dissipar seu interesse, desmitificar sua sedução. Em meio ao rigor especificante da ciência e à expansão volatizante dos processos ideológicos, onde ficaria a arte? Onde poderia desempenhar tarefa própria, sem dissolver-se na organização do Conceito ou perder a identidade nos meandros de um ultra-ativo senso-comum eletrônico?
A racionalidade artística é levada assim cada vez mais a acirrar-se - sobretudo para sustentar sua diferença frente às demais racionalidades instituídas. Afastar-se delas e lograr legitimação como saber específico. Na era da modernidade, isto foi feito ainda em grande parte no contato crítico imediato com o material artístico tradicional, vamos dizer, in loco- ali onde se articulava a tradição - a nível da organização do espaço, da pincelada mesma, ou a nível dos fetiches de pensamento. Por perceber e atacar os limites mais amplos desses fetiches, Duchamp tornou-se Duchamp - o precursor da contemporaneidade. Foi um privilégio da modernidade surgir como um saber a mais diante da razão do século XIX - em plena vigência cotidiana até pelo menos os anos 40 - e seu desprezo quanto à capacidade racionalizante da arte. Subitamente, esta chocou pelo excesso de inteligência e com isso capitalizou uma estranha positividade. Agora a questão surge muito mais rarefeita, mas sutil e difícil - a tarefa é trabalhar sobre as rupturas modernistas, elucidá-las, "desidealizá-las", rompê-las se possível. Romper rupturas, eis a embaraçosa situação. Para a arte contemporânea o problema assume, de saída, forma de aporia: o que fazer quando tudo já foi feito?
Vencer esse bloqueio inicial, esse apriorismo repressivo, que carrega o estigma da academia, exige desdobramentos reflexivos e violências estratégicas - seu material mediatizado, integralmente culturalizado, não permite à produção contemporânea agressão direta. Esse material já resulta de sucessivas agressões que formam a sua História. Nesse terreno. minado, saturadamente histórico, não há lugar para a consciência ingênua. O fato da maior parte da produção atual se resumir a um anacrônico esforço para renaturalizar a arte demonstra apenas a persistência suicida do Mundo da Arte em recalcar a História e a Política para apegar-se a um estatuto oriundo do século XVIII. E representa, sem dúvida, uma reação à própria modernidade enquanto projeto de transformação desse estatuto. A farsa da renaturalização da arte seria assim um meio sub-reptício para afirmar sua validade sem entrar em choque com o Real, como se fosse possível escapar ao processo de racionalização que toma progressiva, cancerosamente, todas as dimensões do real e nelas imprime a pressão da produtividade.
Mais do que nunca, aparece agora o caráter regressivo e reacionário da arte pretensamente ahistórica: um trabalho atual que tenta passar por cima de sua história enquanto objeto de arte perpetra uma delicada violência fascista - se oferece candidamente ao consumo do imaginário dominante e para tanto procura apagar as marcas que expõe, contra a própria vontade, como produto de uma acirrada luta histórica. Trabalhos dessa ordem, trabalhos-maquiagem, formam vários segmentos do meio de arte e compõem, em conjunto, uma maquiagem para esse meio - um recanto nostálgico-decadente que finge ignorar os acontecimentos a seu redor.

Capitalizando o zero

Um cálculo de razão, uma incessante cerebração, passam constitutivamente pelas várias instâncias da arte contemporânea na exata medida em que seu lugar é apenas e radicalmente reflexivo. Até certo ponto, existe somente na trama da própria produção, não possui materialidade definida. Operando em cima do choque da modernidade com o real, não detém a ciência do seu próprio choque - este ainda está interiorizado no trabalho de forma especulativa. O seu material é portanto a reflexão produtiva sobre a história ainda viva, pulsante, da obra moderna. Uma reflexão sobre a negatividade desse material- as torções a que foi e está sendo submetido, as leituras contraditórias que nele se cruzam, suas idas e vindas por assim dizer como matéria simbólica. A arte contemporânea está obrigada a achar aí sua sobrevivência - no meio dessa confusão deve produzir trabalhos que tenham a clara inteligência da cisão que ao mesmo tempo os constitui e separa de si mesmos. Nesse sentido sobretudo a nova arte está condenada à reflexão: traz consigo, a nível da "imediata" formalização, seu próprio absurdo, a dúvida sobre si mesma.
Só talvez como tara de razão, paroxismo, pode a arte reencontrar algum poder expressivo (sua ambígua universalidade, enfim) na sociedade da razão técnica - recusar a racionalização é negar a própria inteligência, aceitar a condição de objeto decorativo. Como tal não seria mais arte; tragada inteiramente pela empiria, perde a transcendência. Mas, sem levar ao extremo essa racional idade, sem tensioná-la nos seus limites e aí confrontá-la com o seu contrário - a irrazão, a loucura - não cumpre sua não-função, a heterogeneidade que a distingue no universo do lagos. A arte acaba assim simples paisagem de conceito.

O cálculo contemporâneo, como defini-lo? Talvez como uma espécie de racionalização do heterogêneo. Um esforço paradoxal para capitalizar poder negativo. Este poder era o apanágio das vanguardas, seu ponto de partida. Agora porém não é mais passível de utilização imediata. A nível empírico, é um fato, coisa alguma impõe-se hoje pela estranheza. Tudo parece já visto, nada tem a força direta do heterogêneo, o impensado subversivo. Nenhum happening vale pelo happening mesmo - forma tão instituída quanto qualquer outra. As coisas da arte não apontam uma direção clara de positiva ou negatividade - sua processualidade decide tudo nesse sentido. Vai daí, a coisa, o objeto em si, não são o ponto final de um contínuo, nem a soma dos momentos de sua realização. Quando não são exatamente o seu contrário irônico - o que há aparentemente menos pensado do que a série "Stars" de Andy Warhol e no entanto o que há de mais elaborado e informado na acepção plena do termo? - mantém uma diferença conflitante entre o que são e como chegam a ser. Nessa distância está a sua possível heterogeneidadeo fato insólito, inexplicável, de ser diverso do seu "resultado" desafia a lógica da produção tecnológica. Desafia a própria lógica científica.

Por meio dessa perversão lógica, a arte readquire quase clandestinamente uma força de expressividade - faz falar o sujeito, o íntimo informalizável do Sujeito, preso em uma objetividade totalmente organizada. Mas atenção: faz falar o Sujeito preso nessa instância, agente de uma situação real. Não um Sujeito livre de determinações que, como é comum acreditar, encontraria na Arte p último canal para expressar sua essência no mundo capitalista reificado. Sutil, hermética e impopular na superfície, a arte contemporânea está profunda, mente "massificada" em suas verdadeiras dimensões - carrega os traços das lutas populares, anda literalmente às voltas com o afluxo das massas e sua contradição com o Sistema da Cultura. A transformação das linguagens não é reflexo das lutas sóciais - é ela própria uma luta dentro da ordem simbólica. Daí o equívoco em analisar essas linguagens por comparação com outros processos sociais - na sua própria materialidade praticam a sua política, definem um posicionamento no real. A questão é interrogá-las no registro correto, na sua historicidade imanente, ao invés de generalizá-las ao léu e, afinal, perdê-las de vista ao buscar sua ampla, geral e irrestrita representatividade. Presa à metáfora da janela, muita gente procura para onde aponta o trabalho de arte e não vê o que ele está mostrando, ali mesmo, na trama problemática da sua constituição. (No caso específico da janela, recomenda-se como antídoto eficaz Magritte).
O trabalho atual sofre pressão, de todos os lados e modos, para expor e exibir sua trama problemática. Não lhe sobram muitos artifícios de sublimação. Deve atender, de pronto, à própria voracidade, sob pena de paralisar-se num discurso sobre si mesmo- esta "irracional idade" é a inevitável contrapartida de sua neurose reflexiva. Mas o caráter transitório, precário, longe de configurar simples espontaneidade, deriva de uma tensão interna básica: ou arriscar uma incerta concretização ou demorar indefinidamente na discussão de seu sistema. Daí seu aspecto esquisito, obrigatoriamente ocasional- ele é real e inelutável uma vez que não há um "tempo" certo para a materialização do trabalho; o objeto está sempre em conflito com o sistema que o engendra. Através desses momentos antitéticos, embaralhados, de seu processo produtivo, revela um antagonismo profundo com a produção racional serializada e seu controle técnico do tempo linear. Ou seja, um antagonismo frente à sua circulação social na qualidade de mercadoria. Evidentemente essa dispersividade temporal, o jogo complexo de momentos diferentes, também são incompatíveis com a produção artesanal. Seus procedimentos seriam "industriais", sofisticados raciocínios produtivos, ainda irrealizados. E que, astuciosamente, aparecem no real como se fossem irrealizáveis. A afirmação de uma inteligência atópica, sem recuperação possível pelo Espaço da Dominação onde se exerce, confere à arte um poder negativo específico - pensar o impensável, fabricar o infabricável, ainda que o faça nos limites regulados pela própria realidade, no terreno espiritualizado da "criação". Assim a arte contemporânea perfaz-se enquanto arte, constrói Ilusões de verdade e destrói as ilusões da Verdade.

NOTAS

1- ROSENBERG, Harold. A Tradição do novo. São Paulo,
Editora Perspectiva, 1974. ( Coleção Estudos).
2 - ADORNO, Theodor W. Théorie esthétique. Paris, Klinck- sieck. 1974. '
3 - Segundo Adorno o elemento engajado é sempre o elemento não artístico do trabalho.
4 - Na verdade, a ânsia por uma representatividade genérica abstrata para a arte segue a visão tradicional que justamente a reduz a fenômeno ilusionista e, por isto mesmo, perigoso para o destino do Estado. Daí a necessidade de submetê-la às considerações do lagos e conduzir sua fala delirante. Tanto quanto na República de Platão, a arte vai servir aqui apenas para acompanhar uma ginástica, no caso uma ginástica ideológica.
acompanhar uma ginástica, no caso uma ginástica ideológica.

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